quinta-feira, 29 de maio de 2008

Os gaúchos chegaram - Marcelo Carneiro da Cunha

De São Paulo

Nós costumamos chegar com a sutileza de uma frente fria e a voracidade de uma nuvem de gafanhotos em jejum. A disposição para negociar com os nativos é mais ou menos similar à dos alienígenas do Independence Day. Desde o oeste de Santa Catarina até os arrozais de Roraima, do litoral do Uruguai ao cerrado do Mato Grosso lá estamos nós, com o chimarrão e térmica em punho, mostrando a que viemos. E agora, meus prezados paulistanos, até aqui, terra da ex-garoa e do trânsito sem solução, nós chegamos.

Na verdade, já estávamos por aqui há tempos. Vocês consumiam nossos rodízios de carnes nem se davam conta de que este movimento era apenas a vanguarda. Os talheres já eram Tramontina ou Hércules há horas, as suas meninas vinham usando Melissas, suas construções usavam aços Gerdau, vocês voavam a mil pelo Brasil nos aviões da nossa Varig e nem percebiam que tudo isso fazia parte de um plano. Há alguns anos compram na Lojas Renner achando que aquilo tudo ali à disposição era uma forma de varejo bem sucedido. Abasteciam seus carros nos postos Ipiranga, achavam que Tio João era apenas uma marca de arroz; o bumba era quase sempre Marcopolo, mas tudo não passaria de uma estranha coincidência?

Na verdade, os gaúchos estavam apenas aguardando o momento certo para mostrar que chegaram e prontos para impor seu estilo de vida. Vocês a partir de agora vão poder torcer por um de dois times, escolham quais vão ser eliminados. Quem insistir em torcer para um outro time será exportado para campos de reeducação no Paraná. Nada de outros partidos políticos que não um de direita e outro de esquerda, ou algo assim.

Comecem a se acostumar com quatro estações por ano, porque essa é uma necessidade básica de um povo que tenha apenas um assunto para utilizar nos táxis. Que passarão a ser Mille e dirigidos por um sujeito invariavelmente mal-barbeado e que sempre vota no Brizola. Seus filhos vão ter mais um item no currículo escolar, que é História do Rio Grande, e vão chegar em casa tendo aprendido a música e letra do Hino da Gloriosa Revolução Farroupilha.

O dia 20 de setembro passa a ser data nacional aqui também e suas mulheres vão ter que treinar para disputar o valiosíssimo troféu de A Mais Prendada Prenda. Aprendam logo o que é prenda, para pouparmos valioso tempo de adaptação aos novos costumes. Vocês terão que aprender a usar expressões suaves como 'mais grosso que dedo destroncado' e 'frio de renguear cusco'. Aprendam o que é um cusco. Aproveitem logo para aprender o que quer dizer 'renguear' porque o frio logo, logo vem aí. Ao receberem um bom dinheiro de forma inesperada aprendam a berrar 'Hoje não tem china triste!'.

Desde já ninguém mais pode se referir ao Rio Grande como 'Sul', uma vez que aqui e todos os demais lugares onde estivermos passam a ser o centro do mundo. Sul agora deve ser algum lugar pro lado da Patagônia. Norte é tudo que fique acima da Via Dutra e Oeste fica para os lados da plantação de soja mais próxima. Leste fica pras bandas do mar, e se existe uma coisa que não nos interessa é água salgada e fria. Dizem que existem outras formas de mar, mas certamente isso é algo que nunca vimos.

O que eu estou afirmando é a pura e simples verdade. Completamos o círculo e nos sentimos fortes o bastante para afirmar a nossa presença aqui em São Paulo com a mesma sem-cerimônia com que ocupamos os planaltos da Bahia. Se havia alguma dúvida, basta irem até o nosso novo templo, objeto de reverência e peregrinação daqui pra frente. O Bourbon Shopping Pompéia, onde reluz, em toda a sua gauchidade, o supermercado Zaffari.

Se alguém tem dúvidas se a invasão é um fato, visitem o Zaffari. Sejam como os sapos que saltam da panela em aquecimento, e não aqueles que nada percebem até que seja tarde demais. Olhem a seção de frutas. Está no cartaz: 'Bergamotas'. Abaixo, em letras pequeninas e numa concessão aos povos ainda não reeducados, 'tangerina', ou 'mexerica', ou algo assim, em português. Na padaria, vão ver que sobre os pãezinhos está escrito o novo nome que todos passarão a usar: cacetinho. Isso mesmo.

Testem o que eu digo. Vão até a confeitaria e perguntem se tem 'cueca-virada'. Vai ter. Vão encontrar Pastelina, o melhor salgadinho com gosto questionável do planeta. Nata Piá e Erva Barão.Cerveja Polar, aquela que não poderia ser vendida acima do rio Pelotas. Agora pode.

Sacudimos as sutilezas e colocamos as garras de fora. Vocês vão passar a se sentir em um outro mundo. Um mundo bem mais simples, com valores cantados em prosa e versos de qualidade duvidosa da nossa música gaudéria, a única que as rádios agora poderão tocar, naturalmente. Nós, de nossa parte, estaremos aqui da mesma maneira em que sempre estamos em todos os outros lugares. Como se estivéssemos em casa, na querência, no pago, no nosso habitat natural que é qualquer lugar onde estejamos e nos deixem inaugurar um Centro de Tradições. Até em Tóquio, sempre os mesmos, imperialistas e sem muita noção do que fazemos, com nossas bandeirinhas nos automóveis e nossas churrasqueiras na varanda do apartamento, que agora passam a ser parte obrigatória de cada residência, ou nada de 'Habite-se.

Estaremos aqui como estamos em todos os lugares. Sem fazer uma idéia muito completa do que acontece ao nosso redor, e simplesmente desinteressados do que quer que seja para saber se onde estamos faz, afinal, alguma diferença nas nossas vidas.



Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem 'O Branco', premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos 'Simples' e o romance 'O Nosso Juiz', pela editora Record. Acaba de escrever o romance 'Depois do Sexo', que será publicado em setembro pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances 'Insônia' e 'Antes que o Mundo Acabe'.


Fale com Marcelo Carneiro da Cunha: marceloccunha@terra.com.br

Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

Nós costumamos chegar com a sutileza de uma frente fria e a voracidade de uma nuvem de gafanhotos em jejum. A disposição para negociar com os nativos é mais ou menos similar à dos alienígenas do Independence Day. Desde o oeste de Santa Catarina até os arrozais de Roraima, do litoral do Uruguai ao cerrado do Mato Grosso lá estamos nós, com o chimarrão e térmica em punho, mostrando a que viemos. E agora, meus prezados paulistanos, até aqui, terra da ex-garoa e do trânsito sem solução, nós chegamos.

Na verdade, já estávamos por aqui há tempos. Vocês consumiam nossos rodízios de carnes nem se davam conta de que este movimento era apenas a vanguarda. Os talheres já eram Tramontina ou Hércules há horas, as suas meninas vinham usando Melissas, suas construções usavam aços Gerdau, vocês voavam a mil pelo Brasil nos aviões da nossa Varig e nem percebiam que tudo isso fazia parte de um plano. Há alguns anos compram na Lojas Renner achando que aquilo tudo ali à disposição era uma forma de varejo bem sucedido. Abasteciam seus carros nos postos Ipiranga, achavam que Tio João era apenas uma marca de arroz; o bumba era quase sempre Marcopolo, mas tudo não passaria de uma estranha coincidência?

Na verdade, os gaúchos estavam apenas aguardando o momento certo para mostrar que chegaram e prontos para impor seu estilo de vida. Vocês a partir de agora vão poder torcer por um de dois times, escolham quais vão ser eliminados. Quem insistir em torcer para um outro time será exportado para campos de reeducação no Paraná. Nada de outros partidos políticos que não um de direita e outro de esquerda, ou algo assim.

Comecem a se acostumar com quatro estações por ano, porque essa é uma necessidade básica de um povo que tenha apenas um assunto para utilizar nos táxis. Que passarão a ser Mille e dirigidos por um sujeito invariavelmente mal-barbeado e que sempre vota no Brizola. Seus filhos vão ter mais um item no currículo escolar, que é História do Rio Grande, e vão chegar em casa tendo aprendido a música e letra do Hino da Gloriosa Revolução Farroupilha.

O dia 20 de setembro passa a ser data nacional aqui também e suas mulheres vão ter que treinar para disputar o valiosíssimo troféu de A Mais Prendada Prenda. Aprendam logo o que é prenda, para pouparmos valioso tempo de adaptação aos novos costumes. Vocês terão que aprender a usar expressões suaves como 'mais grosso que dedo destroncado' e 'frio de renguear cusco'. Aprendam o que é um cusco. Aproveitem logo para aprender o que quer dizer 'renguear' porque o frio logo, logo vem aí. Ao receberem um bom dinheiro de forma inesperada aprendam a berrar 'Hoje não tem china triste!'.

Desde já ninguém mais pode se referir ao Rio Grande como 'Sul', uma vez que aqui e todos os demais lugares onde estivermos passam a ser o centro do mundo. Sul agora deve ser algum lugar pro lado da Patagônia. Norte é tudo que fique acima da Via Dutra e Oeste fica para os lados da plantação de soja mais próxima. Leste fica pras bandas do mar, e se existe uma coisa que não nos interessa é água salgada e fria. Dizem que existem outras formas de mar, mas certamente isso é algo que nunca vimos.

O que eu estou afirmando é a pura e simples verdade. Completamos o círculo e nos sentimos fortes o bastante para afirmar a nossa presença aqui em São Paulo com a mesma sem-cerimônia com que ocupamos os planaltos da Bahia. Se havia alguma dúvida, basta irem até o nosso novo templo, objeto de reverência e peregrinação daqui pra frente. O Bourbon Shopping Pompéia, onde reluz, em toda a sua gauchidade, o supermercado Zaffari.

Se alguém tem dúvidas se a invasão é um fato, visitem o Zaffari. Sejam como os sapos que saltam da panela em aquecimento, e não aqueles que nada percebem até que seja tarde demais. Olhem a seção de frutas. Está no cartaz: 'Bergamotas'. Abaixo, em letras pequeninas e numa concessão aos povos ainda não reeducados, 'tangerina', ou 'mexerica', ou algo assim, em português. Na padaria, vão ver que sobre os pãezinhos está escrito o novo nome que todos passarão a usar: cacetinho. Isso mesmo.

Testem o que eu digo. Vão até a confeitaria e perguntem se tem 'cueca-virada'. Vai ter. Vão encontrar Pastelina, o melhor salgadinho com gosto questionável do planeta. Nata Piá e Erva Barão.Cerveja Polar, aquela que não poderia ser vendida acima do rio Pelotas. Agora pode.

Sacudimos as sutilezas e colocamos as garras de fora. Vocês vão passar a se sentir em um outro mundo. Um mundo bem mais simples, com valores cantados em prosa e versos de qualidade duvidosa da nossa música gaudéria, a única que as rádios agora poderão tocar, naturalmente. Nós, de nossa parte, estaremos aqui da mesma maneira em que sempre estamos em todos os outros lugares. Como se estivéssemos em casa, na querência, no pago, no nosso habitat natural que é qualquer lugar onde estejamos e nos deixem inaugurar um Centro de Tradições. Até em Tóquio, sempre os mesmos, imperialistas e sem muita noção do que fazemos, com nossas bandeirinhas nos automóveis e nossas churrasqueiras na varanda do apartamento, que agora passam a ser parte obrigatória de cada residência, ou nada de 'Habite-se.

Estaremos aqui como estamos em todos os lugares. Sem fazer uma idéia muito completa do que acontece ao nosso redor, e simplesmente desinteressados do que quer que seja para saber se onde estamos faz, afinal, alguma diferença nas nossas vidas.



Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem 'O Branco', premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos 'Simples' e o romance 'O Nosso Juiz', pela editora Record. Acaba de escrever o romance 'Depois do Sexo', que será publicado em setembro pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances 'Insônia' e 'Antes que o Mundo Acabe'.


Fale com Marcelo Carneiro da Cunha: marceloccunha@terra.com.br